sexta-feira, julho 14, 2006

Elogio ao Amor Puro

Aproveitando a deixa do programa de ontem da Revolta dos Pasteis de Nata, fica aqui a forma profunda como o programa acabou (eu sei que já tinha lido isto, mas já não tenho a certeza se foi aqui no bairro, foi?). De qualquer forma e correndo o risco de estar a repetir um post aqui fica, o Elogio ao Amor Puro de Miguel Esteves Cardoso:

Quero fazer o elogio do amor puro.
Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática.Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.

Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões.
O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas.
Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá tudo bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona?
Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo? O amor é uma coisa, a vida é outra.
O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade.
Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar.
O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto.
O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima.

O amor não se percebe. Não dá para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal.
Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem.
Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir.

A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a vida inteira, o amor não.

Beijinhos,

*Alentejohny*

3 Comments:

Blogger Bolha said...

Também vi o fim do programa e já tinha lido este texto do Miguel Esteves Cardoso, acho que num mail. É realmente um texto brutal e que dá que pensar... De facto, concordo que um amor politicamente correcto e bem comportado é, por si só, um paradoxo com aquilo que o amor deve ser: louco, arrebatador e irracional...O problema é justamente: quem é que está disposto a arriscar num amor assim hoje em dia? Tende-se cada vez mais a optar pela companhia e pela segurança, porque o medo da solidão é grande e o de partir o coração maior ainda...Mas secalhar deviamos era todos responder a este grito de revolta do «tio» miguel e instituir o mote da martunis: «no guts, no glory». Provavelmente partiriamos mais (ainda) o coração, mas também é possível que amássemos mais e melhor... a verdade é que é bem mais facil escreve-lo que faze-lo. essa é que é essa...
beijinhos
*sara*

9:13 da tarde  
Blogger Bolha said...

Concordo com a Sara, "no guts, no glory"! Por muito que seja mais fácil e confortável jogar pelo seguro e pelo tal "politicamente correcto", acho que só nos sentimos plenamente satisfeitos (e é agora com este "plenamente" que aparece a Lipa a fazer a piada á Néme do "Pleno" ;p) quando esse amor é único e irracional... por isso toca a deixar de agir como uma cambada de meninos e partir para a luta!!
Ah e já sabem,conselho de ratunis: No glove. no love! ;p

*farfis*

8:00 da tarde  
Blogger Bolha said...

este texto deixa-me muito deprimida, tal como fiquei no fim do programa :S tinha de ser o senhor da gosma a postar, claro :p

*matuxa*

7:25 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home